CAPÍTULO UM
O papel, sujo e amassado de tantas dobras, traz o endereço manuscrito em letra aparentemente infantil. Teria sido uma criança? Tanto faz. Ele relê, franze a testa, puxa da memória. Onde fica isso? Deve ser zona norte, claro, se bem que alguém gritou “deve ser pros lados do cemitério”! Ou talvez não, o nome da rua não é incomum. Ele se vira para conversar com a cobradora, mas antes de pronunciar qualquer coisa, Bertha faz cara de quem não sabe. Ou que não está nem aí. Qualquer das opções, não adianta perguntar. O motorista então devolve o papelzinho à duvidosa passageira, reticente em pegar aquele ônibus. “Olha, moça, eu acho que a gente passa perto disso aí, mas não posso garantir”. Ela questiona onde deveria dar o sinal para descer e, após ouvir que “em qualquer ponto depois da linha do trem”, a tal moça desiste. Tinha muito chão após a linha do trem para sair procurando às escuras.
- Perto do estádio passa, né motorista? – esbraveja Selma, que passara os últimos dez minutos observando o desenlace interminável entre a quase-passageira e o condutor do ônibus onde se encontrava.
O motorista olha para trás, vagarosamente, e no mesmo ritmo responde: “Já disse que passa”. Segue o itinerário. Selma não conhece nada, está há poucos dias em Peroba e o ônibus parece dar intermináveis voltas. “A cidade parecia tão pequena”. O destino é a entrevista de emprego que lhe caíra do céu. Ela está, naquele instante, quinze minutos atrasada. Após vários quarteirões, um pontilhão de madeira (que apesar do aspecto abandonado, aguentou firme) e a tal linha de trem, a cobradora pergunta para Selma se “o seu ponto não é do estádio”?
- Ave, fia, ficou dois pontos pra trás – avisa após o sinal afirmativo – Ó Juvenal, para no próximo que a moça do estádio vai descer.
- Ela tá aqui ainda?
Antes de argumentar que ninguém a avisara, achou melhor não encrencar tão cedo na cidade. Principalmente na véspera da entrevista; se é que haveria, com tanto atraso. “A senhora volta três pontos, desce a rua que corta a avenida, uma que tem a quitanda do Jair, depois da segunda lombada, vai às esquerda e aí dá pra ver o estádio”. Selma caminha – quase trota – praguejando contra o pessoal do ônibus. Depois de voltar os pontos, não lembra mais as indicações. Um açougue? Onde eram as lombadas? Na praça onde jogam dominó alguns aposentados (pelo menos assim aparentam), obtém as informações necessárias e, em poucos quarteirões, avista o tal “Estádio Gonzagão”. Senta-se num banco. “Recuperar o fôlego agora!”
Quase quarenta e cinco minutos de atraso, um pouco mais não faria diferença. Sempre ouvira falar de Peroba, onde nascera seu pai – e onde ele passou a viver após a separação. Era a primeira vez que o visitava. Ainda sentada, levanta as pernas e observa os pés inchados nos sapatos. O sol ofusca a visão. Levanta e vai. Precisa do emprego.
Chega ao estádio, que se resume a um campo de futebol com dez fileiras de arquibancada (apenas em uma das laterais do campo), um ginásio com telhas quebradas e um sobrado que, logo descobriria, destina-se à administração do clube.
Oquei, fosse possível visualizar, seria até exagero chamar aquele pasto esburacado de “campo de futebol”; falta grama, a marcação é pouco visível e, nos gols, as traves são de madeira ressecada pelo tempo, sustentando duas redes repletas de emendas e cordões soltos. Esses detalhes, porém, Selma repararia tempos depois.
No portão de entrada, com hercúleo esforço para não parecer ofegante, Selma repara na única indicação do local: uma faixa plástica sobre os portões de ferro e os dizeres: “Clube de Regatas Portenho”. Repara em outro detalhe: o silêncio. Pelo que soube, seria horário de treino e, considerando as dimensões do “estádio”, a algazarra de homens gritando, xingando e correndo atrás da bola seria facilmente ouvida da calçada. Por sorte, o odor dos suores não teria a mesma desenvoltura para chegar-lhe. De qualquer forma, nem som nem fedor. Estranho.
Futebol. Selma nunca foi chegada. Gosta mesmo é de vôlei, nada de contato físico. E a civilidade! Sem caneladas, cabeçadas, cotoveladas ou outros “adas” que o valha. “Nem mencionemos as torcidas”, pensa, “aquele bando de marginais se ofendendo e partindo pra briga por qualquer bobagem. Trogloditas”. Sentiu algo estranho no corpo ao imaginar o bando de trogloditas suados, discutindo e quase se agredindo. Ai ai. Enfim, esporte é outra coisa. Taí o vôlei. Do futebol, o pouco interesse profissional estava na disposição tática das equipes, em como o treinador conseguiria escapar das armadilhas do adversário. Mais atacantes tornavam o time mais ofensivo? Ou apenas num bando mal disposto em campo, sem que a bola chegue na frente? A bola, aliás, era o que atrapalhava. Sem ela, quase seria um esporte bonito.
O portão de entrada está aberto; logo ao passar, Selma encontra aquele que deve ser o porteiro e pergunta pelo presidente do clube, o senhor Norberto. Estranha os olhos absurdamente avermelhados e a cara de sonso. Teria dormido pouco? “Duvido! Será que não percebem quando um funcionário abusa das drogas?”
- Bom dia moça. Tá na sala de troféus, com todo mundo. É seguindo o corredor, última porta à direita.
“Obrigada”. Sala de troféus? Selma achava que o Portenho jamais tivesse ganho qualquer coisa mas, no fim das contas, tinha uma sala de troféus! “Papai está enganado”, pensa enquanto relembra as pitorescas histórias ouvidas dele, assim que soube que a filha o visitaria. Memoráveis embates no clássico contra o Atlético Macondense, equipe da rival cidade de Macondo. Batalhas ferrenhas, capazes de transformar jogadores medianos em ídolos eternos... ou aclamadas contratações em fiascos enxotados para além das divisas da cidade. Pênaltis perdidos. Bolas na trave. Gols nos últimos instantes. Quanta emoção! Sempre, porém, para decidir o penúltimo lugar na Liga Regional. Ninguém queria ser o lanterna, posição que Portenho e Macondense alternaram ao longo dos anos. Disputa de títulos? Acompanhavam da arquibancada.
Algum título conquistaram! Para que serviria, caso contrário, uma sala de troféus?
Seguindo o corredor... qual porta à direita? O cansaço ainda traz dificuldades ao cérebro de Selma que, na dúvida, bate e em seguida abre a primeira porta que encontra. Sala errada. A decoração, porém, chama sua atenção. Resolve espiar. O previdente leitor, ao menos aquele precioso com a pontualidade, poderia gritar-lhe sobre o atraso à entrevista de emprego, mas seria em vão. O som não entraria nestas linhas. Por isso, em contínua desaceleração cerebral, nossa protagonista admira as duas imensas bandeiras dispostas atrás da escura mesa de madeira. “Não entendo disso, mas aposto que é de peroba”. Deduz tratar-se dos estandartes do município e do clube; antes, entretanto, de analisar os detalhes de cada uma, ouve o ruído da porta fechando atrás de si. Vira-se rapidamente, quase num salto, assustada. Dá de cara com uma senhora de idade (“que velha!”, pensa) com cara de poucos amigos.
- Desculpe, entrei na sala errada. Estou saindo! É que gostei muito das bandeiras.
A velha senhora faz um ruído com a boca. A situação não é boa. Embora agressão física esteja fora de cogitação pelo estado da brava mulher, sua imagem raivosa é assustadora.
- Eu só queria falar com o...
- Que bocê veio facer aqui, sua biscate? – além de brava, tem forte sotaque espanhol e um agasalho com os dizeres: “Óleo de Peroba – Torcida Organizada”. Prossegue: “Es por tu causa que mi Gonçaguita murió! Bocê devia arder em el infierno!
- A senhora tá me confundindo.
- Calla-te! Como ousa vir aqui? Hoy!
A tresloucada senhora, aparentando ter ultrapassado a casa dos 70 anos, aponta a bengala para Selma. Prestes a perder o equilíbrio, coloca-a novamente na posição original. Percebe-se não haver motivos para Selma temer uns safanões, mas a ferocidade nos olhos da adversária assustaria qualquer um. E Selma pode jurar que ela está babando. Agora coloca em riste o dedo indicador da mão livre.
- Quantas beces saiu con mi bebê? Aposto que nem usô camisinha! Ordinária!
- Minha senhora, eu tô me segurando em respeito à sua idade.
- Me chama de vieja??
- Olha, não conheço o Gonzaguito. Eu vim pra entrevista de emprego. A senhora não pode ficar me xingando assim.
A velha acelera os passos – tanto quanto pode – e Selma, acuada, sente a mesa contra o traseiro. “Velha louca!”
- Emprego? Acá? Poderia inbentar una mentira mejor! Mi Gonçaguita!
Apenas um metro é a distância entre as duas. E diminui.
- Eu tenho hora marcada com o senhor Norberto – com dificuldade, as palavras escapam da boca de Selma.
- Con Norbito? Que quieres com mi nieto?
- A gente...
- Pero no perdonas nadie na família? Maria-tchutera de los infiernos!
- A gente se conhece da faculdade. Faz anos que não o vejo. Ele me chamou para conversar sobre a vaga de preparadora física – lágrimas escorrem entre as sílabas.
A “vieja” para. Fixa os olhos em Selma por alguns segundos. Faz um som indecifrável com a boca, pode ser enfado ou desprezo. Ou ambos. Dá meia volta e, com a morosidade já peculiar, dirige-se à porta. Enquanto sai, ainda resmunga: “Yo bem achei medio gordita pra ser una dessas marias-tchuteras...”.
- Quem é gordita aqui? – aí não! Ser confundida com “maria-chuteira”, vá lá, mas gordita? Selma parte pra cima da despeitada senhora – Agora você vai ver o que é respeito, sua...
- Selma?
Norberto aparece na porta.
Apesar da cara cansada e um tanto envelhecida, reconhece o antigo colega da faculdade de Educação Física, cursada alguns anos antes, em Saramandaia. Desempregada fazia meses, Selma descobrira há poucas semanas que ele administra o clube de futebol fundado pelo pai que, aliás, atualmente é o técnico do time. Telefonou interessada numa vaga de preparadora física ou qualquer coisa relacionada à atividade esportiva. Claro que não foi direto ao assunto, precisou fingir uma intimidade até então inexistente. Ainda na incerteza se seria precipitada, arriscou mencionar dificuldades financeiras, o anseio em trabalhar na área e a feliz coincidência dele presidir o clube da cidade onde seu pai residia. Norberto gostou da sugestão. “Não podemos pagar muito. É um clube praticamente amador. Participamos apenas da liga regional” ... “Tudo bem, eu preciso entrar no mercado. Até agora não atuei na nossa área” ... “Então vem conversar comigo na próxima terça-feira, às dez da manhã. Você tem onde ficar aqui em Peroba?” ... “Sim. O papai” ... “Claro, você disse” ... “É, tá morando aí desde que separou da mamãe” ... “Ótimo! Você vai trabalhar com meu velho. Vai adorar ele, é super gente boa, desencanadão!”
- Norbe! Desculpe o atraso. Essa velha...
- Conheceu minha vó?
Ups!
- Não precisa fazer essa cara. Ela é difícil mesmo, ainda mais hoje, coitada. Vem comigo.
Selma o acompanha através do corredor que, se tivesse prestado atenção às orientações do porteiro, deveria ter seguido até o fim. Entram na última porta à direita. Nada de troféus, apenas uma série de cadeiras em volta de um caixão e três coroas de flores.
- Norbe! Desculpe, eu não sabia. De quem é o velório?
- Papai.
- Nossa Senhora. Minha virgem! Sinto muito! Que aconteceu?
- Não temos certeza ainda, foi de repente.
- Volto amanhã. Ou outro dia. Você me liga.
- Olha, agradeço. Não tô em condições de ver teu trabalho hoje, nem sei como será nos próximos dias. Mas tá garantido, viu? Fiquei muito contente com tua ligação, é sempre bom rever amigos queridos. Você pode voltar semana que vem? Acho melhor. Segunda-feira?
- Claro! Não se preocupe! A gente vê isso depois. Precisa de alguma coisa?
- Não, tudo bem – os olhos mostram o contrário – Mas não vai embora não! Fica por aí, conhece o clube, o pessoal. A vovó você já conheceu. É presidente da maior torcida organizada do Portenho, a Óleo de Peroba.
- Uma graça ela! – embora não acreditasse naquilo, o elogio sai sincero. Claro, feito sem raciocínio prévio. Selma tenta acalmá-lo: “Tudo bem, fica tranquilo. Eu me viro por aqui”. Ao sair de perto, estranha: “Amigos queridos?”; na faculdade, Selma mal suportava o puxa-saco e torpe do Norberto. Só que o desemprego e a crise financeira fazem a gente sobrepor certas implicâncias.
A garota fica num canto, não pretende se demorar. Não conhece ninguém e a “intimidade” com a família é irrisória. Percebe o olhar irônico de um rapaz negro, longas tranças. “Pronto”, pensa, “mal cheguei, arranjei a primeira encrenca e já tá todo mundo sabendo”. Caminhar desengonçado, ele se aproxima e puxa papo: “Não liga pra velha, ela tá caduca” ... “Não tem problema, eu entendo” ... “A Dona Henriqueta implica com todo mundo” ... “Bem, dá um certo alívio saber que não é apenas comigo” ... “É, se bem que nunca foi tão rápido ”. O rapaz ri. Selma fica constrangida. “Liga não. A velha nem sabe o que fala. Você é muito baixinha pra periguete”.
Simpatia, definitivamente, não parece ser característica marcante nos moradores de Peroba. Para acalmar, Selma começa a contar até dez. Percebendo a ineficácia da artimanha, antes de pensar no “sete”, aponta para o defunto e pergunta ao negro rastafári: “Boa pessoa?”
- Se era! Uma vida inteira dedicada ao esporte. Tinha o futebol no sangue. Caraca, quase enfartou durante a Copa aqui no Brasil. Aquela goleada pros alemães mostrou que o homem tinha coração forte! Ah, também, sempre no campo com a gente, um geração-saúde de verdade!
- Morreu de quê?
- Câncer no pulmão. A gente bem que avisou pra parar de fumar.
- Fumava muito?
- Dois a três maços por dia, desde adolescente. Até que durou muito, pensando bem.
- Não foi cirrose? – intromete-se um loiro alto, dentes saindo da boca e um olho levemente maior que o outro, assustando Selma tanto pela aparição repentina quanto pela aparência assimétrica.
- Alguém por aí confirmou, câncer. A cirrose estava no início.
Selma sai de fininho, enquanto os dois dialogam sobre o óbito do “senhor esporte & saúde”; ainda teve tempo de ouvir o comentário do loirinho: “Feinha pra uma periguete, né?”
Os passos são firmes para fora do estádio. “Bah! Essa coisa que chamam de estádio!” Muito desaforo para uma manhã apenas. Queriam que fosse assistente de um esportista que fumou e bebeu até cair morto? “E que nome mais estúpido para um time brasileiro de futebol!” Caminha decidida, Selma jamais voltará a colocar os pés no Clube de Regatas Portenho.
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